Comer formigas? De que mais se irão lembrar? Aumentar os impostos?

Jornalista: Descobriste algum ingrediente novo ultimamente? René Redzepi: Sim. Andamos muito entusiasmados com insectos. E numa espécie em particular, que tem mostrado um perfil de sabor escandalosamente delicioso. A pequena formiga preta. Quando pões uma na boca, sentes imediatamente um sabor pungente e acidulado. Uma das ideias é colocar as formigas na mesa e esperar que o cliente diga: olhe, desculpe, mas tenho formigas na minha mesa. Sim, são formigas, responderá o empregado. São a sua refeição!...Mas ainda não tenho certezas de nada. Podem ser usadas numa infusão, podem ser usadas num molho para lhe conferir umas notas ácidas, ou mesmo uma pasta de formigas com crème fraîche para comer com batatas fritas. No fundo, nada de novo para quem já serve, no melhor restaurante do mundo, camarão vivo com maionese. O Camarão vem em gelo, que é para ficar um pouco atordoado e com tal dar menos luta psicológica. É aqui que se traça a fronteira entre um chef e um cozinheiro. Um cozinheiro amacia-nos a alma com excelentes cozinhados, normalmente de matriz clássica ou tradicional. Já um chef, e digo-o com humildade, está no limiar de ser um artista. Desafia e provoca. Por exemplo, aquilo que o Picasso fez com as Meninas de Velázquez, não se faz. Cerca de quarenta e tal takes/quadros a partir de uma única obra. Absurdo, excêntrico, excitante, palpitante, desafiador. Tal como quando um brilhante Chef desconstrói um prato clássico conferindo-lhe uma vida totalmente nova e independente. Ou seja, um Chef é um artista com talento, mas acima de tudo inspiração. Já um cozinheiro, é o gajo que copia, impecavelmente, as meninas de Velásquez para vender como imitações baratas. Tecnicamente irrepreensível, mas infelizmente tão desinspirador como reconfortante. Pelo menos, isso. Fiz questão de mecanizar dois exemplos próximos, ou seja, ambos tiveram o mesmo ponto de partida. As meninas. Isto quer dizer que para mostrar o enorme abismo que separa essas duas figuras, nem preciso falar de outros quadros do Picasso, ou de outros Chef’s como o Dali, Matisse, Degas, Van Gogh, Pollock, etc. Ao mesmo tempo, esta linha que descrevo é a mesma que separa o explorador tranquilo e aventureiro, da intranquilidade que assoma quem vive cheio de medos. É o peixe crú, é a carne mal passada, que vegetal é este? Nunca vi algas na comida. Trufas cheiram a podre. A lista, leia-se teia, é interminável. Que pena. Imagino, então, as formigas na mesa, e um sorriso de orelha a orelha abre-se no meu rosto. Que se fodam estes anormais de merda. Vegetarianos incluídos. Para quê perder tempo a olhar e refletir sobre este triste e pequeno mundo? O outro mundo é muito maior, mais bonito e desafiante. É aí que quero estar e viver. Come-se e experimenta-se de tudo. Sem medos, sem preconceitos. A vida é curta demais para não comer uma lapa crua acaba de apanhar, ou mesmo um camarão. Por outro lado, a vida gastronómica é grande demais para se enfiar num armário de 1 metro por 1 metro onde cabem arroz, batata, massa e bife do lombo. Bem passado. Se o Chef Réne, tal como muitos outros, após dias de trabalho de 15 horas, muita investigação e experiências e profundo conhecimento gastronómico me dizem que as formigas que estão na minha mesa são a minha refeição, porra, eu vou comer uma antes sequer de ele ter tempo de esboçar o sorriso irónico, ou de me tentar explicar como as como. Isso sim, é respeito. Respeito pela obra de um artista. O resto é serigrafia barata e leitores de romances de cordel.

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